O STF (Supremo Tribunal Federal) concluiu um julgamento que assegura a tramitação de uma ação que pede limites ao uso da força policial de Mato Grosso do Sul em situações envolvendo indígenas guarani-kaiowá. O Estado tinha questionado ainda não ter tido a oportunidade de se manifestar, e solicitou nulidade, mas a Corte refutou a alegação e entendeu que agora é que ocorrerá o momento de apresentação de esclarecimentos.
A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) foi apresentada em maio do ano passado pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) dizendo que há “graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição praticadas pelo Estado de Mato Grosso do Sul na elaboração e implementação de sua política de segurança pública”, sendo rejeitada de plano pelo ministro Gilmar Medes. Houve apresentação de recurso, que reverteu a decisão com maioria dos votos, redistribuição ao ministro Edson Fachin, e julgamento de recurso do governo estadual em relação a essa decisão de receber o processo.
A ADPF é um instrumento previsto na Constituição Federal para assegurar a constitucionalidade com o objetivo de evitar ou reparar lesões causadas pelo poder público que desrespeitar preceitos fundamentais da Constituição.
Constou em trecho do voto que não houve prejuízo ao Estado, por não ter sido ainda acionado, que “não havia sido intimado para prestar as informações necessárias à demonstração de que os fatos narrados na petição efetivamente não correspondem à realidade das ocorrências, pois houve no caso concreto a negativa de seguimento da ação de controle”, e que será notificado para contestar as alegações da APIB.
Na inicial, que tem 121 páginas, a entidade traz uma longa descrição da história dos indígenas para defender que foram sistematicamente descuidados pelo poder público em seus direitos, situação que resultou nas ações para tentar retomar terras e os conflitos que a APIB diz serem fruto de uso desproporcional da força e que violam direitos humanos e princípios da Constituição Federal.
A associação menciona dados do Atlas Agropecuário, elaborado pelo Imaflora, GeoLab e USP, apontando que Mato Grosso do Sul tem a maior proporção de terras privadas do país, com 92% de seu território, com as terras indígenas correspondendo a 2,2% da área total do Estado.
A petição faz um memorial histórico, remontando à época da Guerra do Paraguai, que muitos antropólogos mencionam como um ponto de fuga dos indígenas que, ao retornar, encontraram outras pessoas nas terras originárias. Adiante, é citado que o SPI (Serviço de Proteção ao Índio), órgão antecessor da Funai, a partir da década de 1910 forçou “a transferência dessa população para dentro dos espaços definidos pelo Estado como posse indígena”, o que adiante se acirrou e gerou o chamado confinamento dos indígenas.
“Terminada a guerra com a vitória bélica do Brasil, da Argentina e do Uruguai, uma das preocupações do Estado brasileiro, acentuada após a Proclamação da República (1889), era a nacionalização dessa fronteira e isso passava por seu ‘povoamento’. É evidente que a região não era um espaço vazio, tratava-se de um território de ocupação tradicional Kaiowá e Guarani, mas à luz de um Estado colonial, tratava-se de uma zona a ser conquistada e povoada por não indígenas”, consta em trecho de livro reproduzido na inicial da Apib.
Com esse percurso ao longo dos tempos, a entidade sustenta que o uso da força se normalizou e tornou-se prática. Para demonstrar o que classifica como ação violenta, uma série de situações foi incluída, passando por uso de balas de borracha, gás lacrimogênio e inclusão de mortes, sendo 11 desde 2003, quando foi morto cacique Marcos Veron, aos 72 anos.
A Apib cita desocupações em Caarapó e Miranda, o incêndio em casas de reza e a disputa em Rio Brilhante nos anos de 2022 e 2023. Na mesma região, há outro foco de tensão, na vizinha Douradina, onde guarani-kaiowá reivindicam a Terra Indígena Panambi – Lagoa Rica. Houve confronto, indígenas feridos e o Ministério da Justiça determinou a criação de uma sala de situação.
Para mostrar a dimensão política do assunto, a APIB citou o Leilão da Resistência, realizado em 2013 por produtores rurais para arrecadar recursos, a vinda da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2018, que produziu um relatório, a reprovação do tratamento destinado aos indígenas por parte do Parlamento Europeu, externado em 2016, mesmo ano que deputados federais também se manifestaram e a realização de uma CPI na Assembleia Legislativa em 2015.
Liminar – A Apib pede ao STF que conceda liminar para determinar que o Estado do Mato Grosso do Sul elabore e encaminhe ao STF, no prazo máximo de 60 dias, um plano visando o controle da atuação pelas forças de segurança; informação prévia sobre eventuais ações da segurança pública; que os militares utilizem câmeras nas fardas durante ações envolvendo área indígenas; não haja uso de helicópteros para disparos, tema já abordado em relação à atuação das polícias nas favelas cariocas. Também há condutas dirigidas ao Judiciário, que a Apib afirma que a demora em julgamentos representa omissão, para que seja respeitada a competência da Justiça Federal sobre direitos indígenas e o Judiciário tenha comissão para intermediar situações de conflito, o que já existe em relação a disputas de áreas urbanas.
Ao fim, a ação pede que seja reconhecido que não é admitido uso de força desproporcional, que a Corregedoria da PM investigue abusos e que órgãos federais também sejam chamados para acompanhar a ação. A Apib também pediu que o STF determine que quando houver ação policial, seja obrigatória a disponibilização de ambulância para atender eventuais feridos.
Ainda não há nos autos ordem para notificação do Estado para se manifestar.
Este mês, o STF fez a primeira reunião de uma comissão para debater o chamado Marco Temporal, tese que virou lei no ano passado, prevendo que só deveriam ser reconhecidas como terras indígenas já ocupadas ou reivindicadas à época da promulgação da Constituição, que ocorreu em outubro de 1988. O STF já entendeu que esse critério é inconstitucional, uma vez que a Carta prevê a demarcação das terras de povos originários sem fixar marco. A comissão foi criada por determinação de Gilmar Mendes, relator de parte das ações sobre a constitucionalidade da lei aprovada em 2023.
Esta manhã, em Dourados, o governador do Estado, Eduardo Riedel, voltou a falar sobre a situação conflituosa envolvendo indígenas e produtores rurais e cobrou ação do Governo Federal.
“Está moroso. Não é desse governo ou do governo passado, estamos falando de 20 anos. Já ocorreram ‘enes’ discussões jurídicas, agora estou participando diretamente da mesa de discussão no STF representando os 27 governadores e tenho cobrado essa solução o mais célere possível. Estamos sofrendo aqui. Sofre nossa Polícia Militar, sofrem produtores e sofrem indígenas. Não dá mais para conviver com essa situação”, disse ele.
Oficialmente, o Governo do Estado informou que deverá se manifestar sobre a ação quando houver alguma decisão do STF.
Fonte: Campo Grande News
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